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Di Cavalcanti |
Ainda de manhã a mãe preparava a comida do final de semana.
Havia tempos que a família não se reunia.
Finalmente todos juntos: pai, mãe, filhos, netos, cachorro, sobrinho.
No café da manhã, animado como sempre, conversavam sobre os últimos acontecimentos políticos.
Falavam sobre o sistema de cotas e sobre o desarmamento civil.
Os argumentos giravam em torno da oportunidade que deveria haver em uma política afirmativa, de inclusão, e a desnecessidade de se armar um cidadão.
A filha ainda leu em voz alta algumas notas de opinião do jornal da cidade. Teorias inteiras divididas em ilusões práticas por salvadores da pátria.
Também falaram sobre o filme "12 anos de escravidão" e a lamentável legitimidade das agressões aos escravos, que apanhavam não sem antes ouvirem da boca dos seus donos a interpretação particular da palavra sagrada acerca do castigo. Justificavam-se buscando algum perdão moral inconsciente - ou consciente - e desciam o chicote com o peso das mãos. Uma mão era usada para bater e a outra para carregar a leveza da culpa em joias, livros santos, cremes naturais. Havia até o patético e infeliz conceito de "dono bom". Aquele que não maltrata os escravos como os senhores da fazenda ao lado. A escravidão manchou nossa sociedade para sempre e jamais deverá ser esquecida. Há uma alta dívida social a ser paga.
- Mas esse filme já não passou faz tempo?
- Não tem muito tempo não. Concorreu ao Oscar do ano retrasado, eu acho.
- É de um livro, né?
- É sim. Parece que foi o próprio escravo que escreveu.
- Eles sofreram muito.
- O negro ainda sofre.
- Sofre.
- Dá uma agonia assistir. Duas horas de filme que parecem séculos de angústia.
- Quero assistir. Tem no Netflix?
- Não sei.
- Shiii.
- O que foi, mãe?
- A carne moída não vai dar.
- Eu vou ao açougue.
O filho trocou de roupa. Vestiu uma camiseta cuidadosamente branca, tal como a sua cor, um relógio mediano, calça de marca e um tênis da moda.
A fila do açougue estava grande. Logo atrás do garoto apareceu um homem baixo, negro, sorridente, vestido com roupas não tão novas e chinelos.
Trocaram um leve aceno com a cabeça, cúmplices da espera.
Quando da vez do filho, a atendente perguntou:
- O que vai ser?
- Quero 1 kg de carne moída.
- Qual carne o sr. quer?
- A maminha está magra?
- Está sim. A carne está boa.
- E o patinho?
- A maminha está melhor.
- Pode ser então.
Enquanto o garoto aguardava a mulher sorridente moer a carne, o segundo atendente falou em direção ao sujeito negro e baixo:
- O que vai ser?
- Também quero 1 kg de carne moída.
- Carne de segunda?
- Não não. Pode ser maminha também.
E assim se passaram 12 segundos de escravidão camuflada àquela sensala moderna.
Tadeu Rodrigues
out/15
*Baseado em fatos reais.
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