Em memórias - diálogo
Minhas mãos nuas amarradas, suadas
em sangue. O estampido chegava aos meus ouvidos entre choro e riso. Não consigo
lhe descrever com exatidão todos os estalos, ora do coturno marchador, ora do
meu peito com seu coração surrado.
Não vi ao certo quem caminhava de um lado para o outro à
minha frente, "maldita venda". Mas pelo andar, sabia quem era, e lembro-me do
seu rosto perfeitamente, cada pedaço de pele...
Eu estava trancado ali há alguns
dias. Sentia sede e fome. Meus lamentos eram preenchidos com pancadas. Exalei
meu desespero com muitos soluços, que me tornaram digno de pena... "Soluços são engraçados quando aos montes;
o meu não era".
Perdoe-me se estou sendo
reticente. É a parte romanceada do que foi minha vida. Preciso contar o resto:
Naquele início de semana, não
deveria ter falado tanto. Não sei o motivo do tamanho erro que me custou a
vida. E pelo jeito, errei feio. Éramos bandeiras e brados, reuniões e ideais.
Outrora preso em mim, senti-me liberto ao não concordar com aquela maré
demagoga do pseudo discurso contratual entre a moral e o bem comum. "Libertei-me ao não concordar, e não vou me
importar com as dores de agora".
"A
verdade triunfará", como minha falecida mãe ensinou. Acreditava
nisso.
E após dias de abandono completo,
ainda amarrado, meus ouvidos voltaram a ouvir algo depois daquele silêncio
gritante de tensão e medo. Senti uma luz entrando pela fresta da minha venda; e não era nenhum
salvador. Percebi depois que eram
várias pessoas, e não apenas uma. Cuspiam ordens e trejeitos de respeito. Meu pulso doía muito. Senti o
sangue escorrer e lambuzar a parte de trás do meu corpo. Eles queriam nomes
e eu os tinha. "Não disse uma palavra,
jamais diria". Não proponho complô às custas de uma mísera pensão e um nome
de guerra. Não queria nome de generais em praças públicas, misturando tais às
brincadeiras infantis. Queria minha voz e meu jogo de cintura, queria minha
bola e minha cachaça branca, queria meu gingado e meu jeito de fazer política, queria
tolerância... "Eu só queria um colo, mesmo
me sentindo mais fraco por isso".
A hora havia chegado. Soltaram meus
pulsos. Fomos a uma sala ainda menor. Falaram que eu seria julgado. Porém não houve
defesa e sequer um banco duro. Fiquei de pé. Senti uma pancada forte na nuca,
caí sem sentido. A venda se soltou e vi uma pessoa escondida na pequena janela
na parte de cima da sala, ela tinha uma câmera e registrava tudo. Os generais
não desconfiaram e continuaram com as pancadas. Senti alguns ossos se quebrando
e já não diferenciava realidade de delírio.
Naquela saleta, dando um ar de
tribunal, os milicos aprenderam bem a coisa toda. A lei superava qualquer outro
direito humano, pois a recitavam antes de cada pancada como se fosse um musical.
Desfalecido, caí no chão gelado.
Não demorou muito para o meu falecimento. Alguns minutos.
Não contem com a riqueza de
detalhes o que se passa a partir daqui, pois não sou mais vida, apenas memórias
ao vento. Alguns dizem que ainda não morri, por isso consigo lembrar tudo. Outros dizem que somente irei morrer de fato
quando todos se forem. "Mas quando? Que
todos?"
A minha esperança estava naquela
máquina utilizada pela pessoa que a tudo registrou. Não sei quem era aquele bom
corpo, mas sei que o prenderam dias depois. Estava morto e, provavelmente, em
memórias, assim como eu.
Felizmente a câmera foi parar em
boas mãos, em algum porão secreto que os meus ainda preservaram. Confiaram em
um dos nossos para uma boa revelação das fotos. "Susto e surpresa..." As fotos registraram meu corpo morto e alguns
militares fardados e eretos. Porém, nas imagens, os milicos não tinham rostos,
somente os quepes, que flutuavam sobre seus pescoços. Não foi possível
identificar ninguém. Atribuíram o feito a um feitiço. Mas bem sei que não é
feitiço algum. Sei quem é cada pessoa que ali estava. Pena que sou só memória
esgotada.
O que nosso Supremo visionário sabe
de lei, eu sei de dor; e me custou muito sangue e uma barrada ideologia. Sei da importância de cada palavra que proferi àqueles infelizes. Era meu jeito de tentar
vencer.
Passei a ser apenas papel. E,
olhando aos céus, até onde meus cabelos ateus permitiram, soprei aos ventos e à
minha nova religião delirante:
- Senhor
Julgador, não os perdoe, eles sabem o que fazem!
Tadeu Francisco
Mar/12
Este texto faz parte da 5ª Blogagem Coletiva #DesarquivandoBR
Mais informações:
Tadeu, meus parabéns! Este é um grito aqueles que não ouvimos, conhecemos e muito menos vimos. Mas que devemos muito por deixar uma situação mais digna em nosso país. É lamentavél que apenas pouca pessoas lutem por está causa...
ResponderExcluirTadeu,realmente é impressionante a intensidade com que você descreve os sentimentos do personagem.Acho que o sofrimento dessas pessoas não foi em vão ,mas há muito o que humanizar nesse país ainda.Parabéns pela expressividade!
ResponderExcluirTadeu, primeiramente parabéns pela profundidade do escrito,estoteante! Pois bem. Faço comunhão com o pensamento nosso companheiro "Hebner Silva"; pois é o grito do mais necessitado, do mais pobre, ou seja, aquele que não tem voz, mas o seu silêncio grita nas ruas e ruelas das nossas grandes cidades. A escritora mineira Adélia Prado afirma:“Não quero faca, nem queijo. Quero a fome.“ Não queremos somente a fome do comer o "queijo", mas queremos a fome da justiça que deveria imperar e instigar a todos para essa busca da verdade que desfacelou, afinal: o que é a verdade? Com a sociedade líquida de Bauman, ele é um fator variante na sociedade. Mas ainda fico com a verdade de outrora. Pois bem. Manifesto uma vez mais, que faço aqui meu apoio para que o "grito dos oprimidos" não seja um grito variante, mas um grito de vitória e libertação. Termino deixando a todos uma prece que o grande profeta dos nossos tempos fez ao povo sofrido que clama por libertação: O texto se rotula: Oração dos Direitos Humanos
ResponderExcluir" Ó Deus que nos criastes à vossa imagem e semelahnça,
na dignidade de filhos e filhas,
herdeiros de vosa vida e de vossa glória:
Abençoai todos os movimentos de Direitos humanos, fortalecei todas as pessoas que por eles lutam
educai-nos na convivência,
co-responsavél e feliz,
da dignidade humana que nos concedestes.
Por vosso filho Jesus,
nosso Irmão divino e humano,
Caminho, Verdade e Vida.
Amém, Axé, Awere, Aleluia!" Amigo dos pobres Pedro Casádaliga, Bispo Emérito da prelazia São Féli do Araguaia.
Querido irmão, amigo e companheiro da luta e da caminhada, Tadeu. Meu abraço fraterno em Cristo Nosso Irmão e amigo.
Frei Fellipe da Silva Toledo, OSA. Que Deus de amor nos abençoe na amor, na graça e na justiça.
Valeu pelas mensagens, pessoal. Em especial Fellipe e Habner. Difícil falar sobre esse tema. Me incomoda saber quantos jovens morreram e foram torturados por irem contra o estado ditatorial. Graças a eles, hoje somos mais livres no pensar. Não podemos engessar as ideias e esquecer todas as barbáries.
ResponderExcluirAbraços, amigos!